Uma carta para Zila Mamede

Homenagem da Editora da UFRN a Zila Mamede no trigésimo ano de sua morte, o projeto “Cartas para Zila Mamede” selecionou cartas endereçadas à escritora e bibliotecária. Marize Castro é autora do projeto. O lançamento do livro digital acontece dia 26 de outubro de 2016, às 14h30, no auditório da biblioteca central da UFRN.

 

Poeta,

Peço licença, de antemão, para assim chamá-la, pois bem sei que não lhe agrada o epíteto poetisa (poetisa é mulher que faz versos parnasianos, você dizia: “eu sou poeta!”). Andei perseguindo, e não se assuste, poeta, pela força da palavra, logo você, que sabe o valor de cada palavra no seu exercício de fazer poesia, pois, melhor dizendo, saio à procura é de sua poesia, em que me abrigo, habitar e itinerário de uma vida inteira.

Encontrei mais cartas de Drummond e uma dedicação que vou chamar carinho: traçar a bibliografia de cinquenta anos de vida intelectual de Cascudo e a Civil Geometria de João Cabral de Melo Neto. E no meu exilar, Zila, encontrei o zelo com a sua força motriz capaz de compor bibliografias e bibliotecas, profissão que também escolheu além do seu ofício de ser poeta. Atleta, soube que caminhava, nadava; o princípio do corpo são para um mente sã, me parece que lhe pertencia. Para escrever é preciso mover o corpo, andar, nadar, entregar à mente a flutuação do momento, é um estar presente e um desafogo das atividades do dia a dia, como também são pôr a casa em ordem, preparar uma refeição, sair às compras, ir à livraria, à manicure, frequentar os amigos. De tudo um pouco você fazia. Estava em todas, era poeta, bibliotecária, mulher, amiga, filha, um prisma espelhava todos os seus papéis e em todos eles reunia a poesia.

Você, uma poeta que viveu a vida da cidade, adotou Natal, nascida em Nova Palmeira, na Paraíba, depois residente em Caicó, menina, até que viu o mar pela primeira vez em Natal e se apaixonou para sempre, recolhendo-o como uma precisão e dimensão para vida: infinidade, perenidade e renovação, quantas lições o mar revelaria. Mas também não deixou de correr outros espaços, Europa e Estados Unidos, fosse a trabalho e a estudo, aperfeiçoando seu empenho de construir bibliotecas. Você cultivou este saber, e a mim me admira este exemplo de vocação, disciplina, determinação, aprendizado, exercício físico e da palavra, e a completa admiração pelo mar. Dedicação ao trabalho, capacidade de amar e liberdade para o amor, amizades cultivadas, Ah, Zila, você fez da vida o espaço completo da plenitude, abraçando-a. Fez da vida um espaço e tempo para se viver.

Você que uniu o peso da pedra à delicadeza da flor; você que numa fotografia preto e branco do álbum de retratos não deixou de registrar: o vestido era verde escuro (Praça Pedro Velho, 1949); você que provocou a fluidez da vida, oceano navegável, quando o que se espera e se persegue por toda vida é uma solidez contrária à da terra, nada flutuante, afirmando: como pois ser continente, se fui nascida no mar? O mar foi a grande manifestação na sua vida. Ali estava a matéria constitutiva de sua essência, e revelou a certeza de que nada é certo, tudo é fluido e ao mesmo tempo perene, imenso, navegável, é mar. E ao ensinar que viver é a aventura de si mesmo, receitou certa de que cada existência é um oceano: todo mundo é alguém. Maior que tudo é a vida. E disse mais: Depois seremos regatas em costa sempre esquecidas.

O seu tempo foi sempre o quando. Presente. O que deixou por último foi Herança, que veio depois de Navegos, que veio depois de Exercício da Palavra, e depois de Arado, e Salinas, e Rosa de Pedra. Seus versos livres, e por isso nos poemas cabiam até sonetos. E neste fazer o saber que nada nasce pronto e acabado e que paciência e tempo são precípuos para que haja a realização da poesia. Por isso primeiro nasceu a rosa da pedra, o trabalho de extrair do bruto o belo, sabendo ouvir Antônio Pinto de Medeiros, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, professores de poesia, aprendizado dos grandes mestres. Poesia é exercício, é semear palavras com o arado extraindo das salinas. E a sua poesia se fez assim, da ida à manicure, do fusca, do encontro na casa de Odilon (Ribeiro Coutinho), o seu mar, o seu silêncio, a infância, a cidade, o telefone, bar, o galo do Convento Santo Antônio, a rua (Trairi) e até “Bois Dormindo”. E foi poeta da vida inteira.

 

Gustavo Sobral

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Gustavo Sobral

Sobre o autor: Gustavo Sobral

Gustavo Sobral é jornalista e escritor, tudo que escreve, rabisca e publica está disponível no seu site pessoal gustavosobral.com.br