A viagem do elefante
A rua da Conceição compete com a Rua Grande, nos documentos, a ser a primeira da cidade. Estamos em Natal, Rio Grande do Norte, capital, sede do IHGRN. Cidade que nasce e cresce as margens do Potengi, o rio dos comedores de camarão. E como o índio guerreiro e capitão-mor dos índios, Felipe Camarão, somos todos guerreiros, e todos poti, potiguares.
O Rio Grande foi obra portuguesa decidida: ou se povoa ou se perde a capitania. Uma capitania não conquistada por João de Barros e Aires da Cunha, seus donatários, por uma série de infortúnios.
Chega 1599, nasce Natal na Cidade Alta, um platô, protegida, e como escreveu Cascudo: já nasceu cidade. E ali no núcleo primeiro de povoamento, vizinho a antiga matriz, fez-se para sempre um edifício séculos e séculos depois.
Construção do seu tempo, três grandes salões para as proporções da época, elevado da rua, com uma charmosa sacada lateral. Em 1906 é concluído, e seria sede da instituição que, embora jovem, era a mais importante do seu tempo. E continua. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, fundado em 1902. Mas acontece que o tribunal de justiça andava sem sede…
O instituto vinha de sedes provisórios, até casinhas alugadas, e passaria por outras, e uma delas, aquele espaço que dividiu com o tribunal. Contam que hoje, onde figura salão nobre, os desembargadores descansam das sessões em cadeiras de balanço aproveitando o terral nas tardes quentes de verão na Cidade do Sol. Aliás, é de Cascudo a observação válida: em Natal há apenas duas estações. O verão e a do trem.
Então o instituto ficou para lá e para cá só tomando aquele espaço como sede definitiva em 1938. Obra do presidente Aldo Fernandes, filho do presidente Hemetério Fernandes, neto do fundador Manoel Hemetério Raposo de Melo, pernambucano, que era meu tetravô, de maneira que gerações e gerações da família zelam por aquela casa.
Assim, o instituto seguiu a sua história na guarda da documentação do período colonial, imperial e republicano, montando uma biblioteca notável, conservando um museu de relíquias, como a estola do revolucionário de 1817, Miguelinho; a primeira urna eleitoral, o cofre da intendência e tudo mais, e toda uma história que se escreve nas atas e nas edições de sua revista. Abro aspas: “O IHGRN possui documentos originais com uma quantidade de grandeza fora do comum”, professor José Luiz da Mota Menezes. Fecho aspas.
Mas acontece que, a casa da memória do Rio Grande do Norte, este grande elefante que está nos mapas, o tempo foi maltratando. O descaso, o desinteresse do poder público, a falta de verba, de funcionários especializados e a deterioração do edifício exigiam uma tomada de providência. Uma salvação. Então foi preciso uma obra, refazer a fiação, recuperar o piso. Mas eis que a obra é embargada e o instituto fica a ver navios.
Todo o acervo teve que ser retirado às pressas. O mobiliário, os documentos, os livros, e na urgência e sem a condição adequada de mudança. Estava fadado a perecer no sótão do edifício anexo. Espalhado pelas salas, pelos cantos, até que a lentidão e morosidade do judiciário fizesse a justiça. Tardava, tardava, o acervo se perdia. O prejuízo material irrecuperável, as pesquisas interrompidas, o elefante pairava órfão de sua casa da memória.
Até que tudo se tornou passado. Um acordo judicial colocou a engrenagem dos reparos necessários em andamento, voltamos a publicar a nossa revista, tratamos da digitalização do nosso acervo, rearrumamos o museu, reabrimos para visitação e preparamos a longa viagem da biblioteca do elefante e do arquivo a ser instalado nas modernas estantes deslizantes. Começamos uma nova história. Precisávamos começar um novo instituto, 115 anos depois.
Fiando-se no ideário dos fundadores, procedemos com novos estatutos, criamos cadeiras, firmamos um calendário cultural para palestras e exposições, chegamos às redes sociais e fundamos um site. Caminhamos.
E estamos dispostos a fazer mais. Num Estado pequeno, pobre, o instituto assume o papel não só de guardião da história e da memória do elefante, mas é responsável pelo fomento da sua cultura. Assim, há também a busca pela interiorização, pela presença dos municípios no instituto. Agosto passado (2017), trouxemos para à tarde no nosso largo, a cultura popular, o folclore do município de Ceará-Mirim, evento que ficou registrado como #Ocupação.
Buscamos estar no dia-a-dia do Rio Grande do Norte, pregando as tradições, guardando as suas relíquias, preservando a sua memória, mas também buscamos estar atentos ao presente, as novas concepções museológicas, ao papel da revista como um canal de conhecimento também para o leigo, a firmar-se como um ator social, ampliando o nosso papel. Os jornais da capital, a par da apatia cultural em que o Estado se encontra, tem reportado o nosso sopro de ação e esperança.
Quanto a 1817, Registramos a ausência de profundidade de estudos da história da revolução no interior do RN. Agostinho Pinto de Queiroz, por exemplo, meu ancestral, avô da avó da minha avó, revolucionário de 1817, foi preso e enviado para a Bahia até ser anistiado por Pedro I em 1821. A sua história e de outros jaz esquecida ainda 200 anos depois… Quanto a Tavares de Lira, citado na conferência do professor Chacon, acrescento que é a primeira do RN (1921); e a de Cascudo, também referendada, é de 1955, e é ele quem escreve alguma coisa já mais para além dos acontecimentos na capital.
Registro ainda que a norte-rio-grandense Izabel Gondim conta tin tin por tin tin o movimento em Natal, porque conheceu testemunhas. Aliás, professora e historiadora era sócia correspondente do IAHGP, admitida em 1883; e a primeira mulher sócia do IHGRN em 1929.
Portanto, participamos e celebramos a Revolução de 1817, sim; reeditamos uma edição especial da nossa revista, aquela comemorativa dos cem anos da revolução (1917), promovemos uma sessão solene em celebração. Foi o que alcançamos em meio a todo este processo narrado de reconstrução que vivemos. Saímos do nada, 115 anos depois, para propor um novo instituto para os próximos 115 anos.
E viemos aqui ouvir, porque combalidos com cada moinho de vento do dia-a-dia, não nos sobrou ainda tempo para pensar 2021, 2022 e 2024. Por isso viemos ouvir, ouvir para aprender, ouvir para levar as ideias e os pensamentos de cada um dos institutos. E procurando conhecer a cada um, começamos antecipadamente a enviar um pequeno questionário para mapeamento de nossas instituições estaduais. Creio que todos já devam ter recebido e já estamos obtendo respostas e aguardando respostas.
Alagoas, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná: muito obrigado! Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba e Pernambuco, já fizemos o primeiro contato e estamos aguardando! Piauí e Sergipe, por favor, precisamos dos seus contatos! E precisamos dos contatos, quem os tiver, nos passe, dos institutos de Amazonas, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rondônia.
É ao pensar juntos onde estamos, para onde vamos, e o nosso papel institucional num país de inúmeras carências que, face a todos os descasos, problemas, dificuldades, podemos nos erguer pela criatividade, pelo empenho, e mais que isso, pela esperança e perseverança.
Resgatando o exemplo dos grandes nomes, cito dois dos meus maiores conterrâneos, sem prejuízo para os demais, Rodolfo Garcia, meu patrono no instituto, sobre o qual atualmente escrevo um trabalho; e Luís da Câmara Cascudo, que certa vez disse:
“Qual o segredo de trabalhar sempre e não desanimar? É simples. Consiste em não esperar estímulo, em não aguardar recompensa, em não pensar que está sendo admirado e compreendido. Trabalhar pela própria alegria do trabalho, sem interesse, sem orgulho, sem imediatismo. Confiar na justiça infalível que o Futuro trará aos que perseveram numa estrada limpa de egoísmos e livre de vaidade esterilizadora”.
Assim, conclamo a todos a responder ao questionário, a colaborar com a nossa pesquisa, que será divulgada, e convidamos a todos, de braços abertos, acolhida potiguar, a visitar o pequeno grande elefante, o nosso Rio Grande do Norte, a conhecer a casa da memória. E, assim, encerro essa longa viagem do elefante a procura de um futuro que hoje aqui encontro.
Recife/PE, 06 de março de 2018
Gustavo Sobral
Diretor de Biblioteca, Arquivo e Museu do IHGRN, representante do IHGRN no VI Congresso Nordestino de Institutos Históricos