Conta a história

Discurso de posse proferido a 27 de outubro de 2016 no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Conta a história que Câmara Cascudo descia e subia a avenida Junqueira Aires em busca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Seguia para consultar manuscritos, cartas de data e sesmaria, registros, relatos, jornais antigos, livros raros e assim escreveu a história da cidade, do Rio Grande do Norte e outras tantas que havia. Não havia desejo de glória, fortuna ou outra questão qualquer que não fosse a missão imemorial de compor a história registro do tempo.

Posto que seja matéria de atas, decretos, documentos, não se necessitaria que se recontasse o já escrito, mas o passado, a história, é também memória, é narrativa, é viver para contar. Tomar notas, consultar, escrever, outra não é a forma de conhecer o passado e escrever a história e não outro é o papel dos narradores de todos os tempos, que nascem em Homero e, depois dele, nunca terminam. Tavares de Lyra, Nestor dos Santos Lima, Adauto Câmara, Câmara Cascudo, Itamar de Souza… a voz que aqui fala não é outra que a soma de todas as vozes em busca do tempo perdido que não é outro que aquele que se descortinou por esta Cidade Alta, a Ribeira lá embaixo, e cujo Instituto é testemunha.

No salão nobre do edifício, quando não sonhava ser sede do Instituto, funcionava o Tribunal de Justiça e os desembargadores descansavam antes das sessões nas cadeiras de balanço que ali havia. Natal crescia vagarosa, lenta e floresciam cajueiros em dezembro. Uma cidade que andava de bonde. Uma estação que calhava lá em Petrópolis restou sujeita aos reclames do jornalista Eloy de Souza escrevendo em 1914.

10 horas do dia, doutor Eloy tomou o bonde para visitar o governador. A viagem quase não teve fim, porque o veículo saiu dos trilhos umas três vezes. A última, ele diz, foi o carro ficar com a roda enterrada na areia. Indignado, perguntou ao condutor se era sempre assim ao que o cobrador respondeu: há três meses que vinha de munheca inchada de tanto levantar o bonde virado. E em movimento não era melhor, diz doutor Eloy que, além do barulho, a tremedeira obrigava o passageiro a suspender os quartos a todo instante. E assim ele resolveu que só ia andar a cavalo e ainda pouparia os dois tostões que custava o bonde. E isso pra não contar o verniz que saiu das bonitas e a barra da calça tomada de areia.

Esta era a Natal que se dizia não há tal. Luz elétrica só se viu (e os convidados erraram o garfo da boca, admirados) quando se acenderam as lâmpadas com a energia emprestada da fábrica de tecidos Juvino Barreto, a primeira e única da cidade, e foi para receber o presidente Campos Sales; e meninos traquinas, são memórias de Dom Nivaldo Monte, passavam sabão no trilho do bonde que deitava a escorregar. A agua de beber era do Baldo e quem não podia pagar a pena comprava no canequeiro. O caminho de beber descia para depois da Igreja do Galo, e foi o percurso que fez o caminho.

Natal nasceu e cresceu assim, tímida, semeada na Cidade Alta, com casa de câmara e cadeia, igreja matriz, cruzeiro. Foi do caminho da cidade ao forte dos Reis Magos, do forte à cidade que se desenhou a Ribeira do comércio, da praça Augusto Severo, do Teatro Alberto Maranhão. E não era fácil. As chuvas e as cheias do Potengi alagavam a área que os sucessivos aterros procuraram contornar. Conta-se que os poemas do açuense João Lins Caldas naufragaram nas cheias que assolavam a Ribeira boiando com os baús onde eram guardados. E tudo é história.

Depois foi a fábrica de tecidos com bueiro e o apito às cinco horas da tarde dispensando os funcionários. O comércio descia para a Ribeira e a Casa Novo Mundo anunciava luva, chapéu, bengala, retrato do Papa. Havia estúdio de fotografia e Manoel Dantas dirigia o jornal A Republica e escrevia os artigos de fundo e em um deles anunciou o perigo iminente: Natal seria coberta pelas dunas. História em que também cabe Henrique Castriciano, poeta, secretário de governo do Estado, que lançou a moda de valorizar a cultura popular e o santo padre João Maria que rezava missa na matriz. Cafeterias, cinema e outras diversões como os clubes de remo e outros espetáculos como os aviadores sobrevoando a cidade viriam depois. E até o dirigível que flores jogou do céu em homenagem ao aviador Augusto Severo.

Mas a história do Rio Grande do Norte não nasce na cidade. Tudo começa às margens de um rio que não é outro que o rio Ceará-Mirim, aquele mesmo que alimentaria canaviais e engenhos, pois está posto que foi em Ceará-Mirim que procuraram se instalar os filhos do donatário da capitania, mas que ao encontrarem a hostilidade dos índios, tiveram que recuar. Isso aconteceu por volta de 1535,1536: antes, portanto de fundar-se a cidade do Natal.  Ali, naquele rio, naquele vale, começa o Rio Grande do Norte, os engenhos e o açúcar. Aqui a história de todos os tempos se encontra. Na avenida Rio Branco, casa de número 41, vivia um velho advogado, homem de brio, modesto, que outro não seria que Manoel Hemetério Raposo de Melo e era meu tataravô.

Pois foi este homem que, sepultado nas paredes da matriz de Ceará-Mirim, semeou na sua passagem, exercendo funções de promotor e juiz, era o Império, naquela terra, naquele vale, a sua gente, porque levantados daquele chão ali constituíram famílias que construíram engenhos e fizeram açúcar e outras gerações; e foi este homem que dizia que a sua riqueza era a sua pobreza, um dos fundadores deste Instituto. Cento e quatorze anos passaram e a sua história hoje aqui renasce.

Pois foi este homem que, em 1902, se juntou a outros tantos sonhando esta Instituição para abrigar todos os documentos antigos, livros seminais, e outros tantos marcos e relíquias, o pelourinho, a primeira pia batismal, o primeiro telefone e a primeira urna eleitoral. Estão cá, além de documentos, livros, jornais, a memória da cidade, a memória do Rio Grande do Norte e todos os nomes que escreveram-na e dela foram protagonistas e a quem somos tributários.

Termino. A voz que ditou estas linhas quis ser a voz de todos nós. A certeza que resta diz que sem este passado futuro não existiria.

 

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Gustavo Sobral

Sobre o autor: Gustavo Sobral

Gustavo Sobral é jornalista e escritor, tudo que escreve, rabisca e publica está disponível no seu site pessoal gustavosobral.com.br